sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Histórias da vida real

Pra que tantos bons dias?, pensou, já com a cara embirrada, tomando o café sem ver, sem sentir o gosto, a temperatura. Notou a xícara esquentando, mas só.
Suspirou, mais bons dias. Esse povo não cansa? Bom dia, bom dia, bom dia...
Quero que se fodam todos, todos! Pensa nisso e lá ta outro ‘bom dia’, esse fez até um sorrisinho depois, que retardado!
Que dia era hoje? E pra que saber? Pra que torcer que fosse um bom dia.
Aquele dia, como todos os outros era apenas mais um dia, mais um.
Se tivesse coragem e uma arma, ou uns comprimidos, mas nem isso.
Solta um suspiro sem ver, aquela paisagem, aquela janela empoeirada todo dia o mesmo
quadro, já tinha cansado.
Olha pra t.v. ligada ali desde sempre, alguém fala algo que agora ele não quer escutar, apenas se apega aquele barulho como referência de mundo. Alguém diz ‘bom dia’ na t.v.
e ele percorre a sala de coração apertado...’bom dia é, aonde ? ’
Alguém passa por ali limpando, fazendo barulho, cantarolando um sambinha,
Ele amaldiçoa a música, nossa, música..há quanto tempo.
Espera a velha mulata sair. ‘Vou ligar o som’, pensa com um meio sorriso...
No automático, desliga a t.v. coçando a bunda, escolhe um viril e conclui a tarefa.
Respira.
Gosta do que sente, enquanto a música escorrega pra dentro...
Respira fundo.
Sim, gosta daquela calma que vem com o som.
Respira mais fundo ainda, já sorrindo...
Talvez eles até tenham razão...
Talvez seja um bom dia..
Talvez..
Mau humor volta lembrando do fardo pela frente. Desde quando virou um fardo e pesado, não sabia.
Apenas, que tinha perdido aquela alegria, aquela esperança que seu povo todo tinha, sei lá onde, se esqueceu de recarregar as pilhas.
Tentou lembrar de quando era feliz. De quando sorria por nada.
Lá atrás. Antes de casar e se enfiar naquele fim de mundo pra poder caber naquela casa e naquele fim de mundo. Também deixou de sonhar, porque não dava, simplesmente
não se alimentaria de sonhos..
Sim, nessa época sorria, queria ser pintor de paisagens.
Era dos bons, diziam.
Queria ir pra uma praia e ficar ali ciscando moedas de turistas, pintando pores de sol em azulejos.
Mas foi picar cartão, cumprir horário, era a sina.
Com um gosto amargo na boca, não sabia do que, olhou pela janela e sem reparar no horizonte, praguejou a chuva que se anunciava perto.
Já se conformara, e talvez fizesse cara de feliz na próxima ceia em família, decidiu enquanto botava o uniforme surrado e fechava a janela.
Agora ia. E a música na vitrola que quase o alegrara ficava pra trás.
Já na porta ouve a esposa gritar: ‘Tenha um bom dia!’...


Silvana Gonçalves

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